De acordo com um relatório, Bogotá e as universidades privadas são responsáveis pela maioria dos casos de maus-tratos na formação médica.
A morte da médica residente Catalina Gutiérrez Zuluaga em 2024 marcou um ponto de virada na discussão sobre as condições dos médicos em formação na Colômbia. Seu falecimento, ocorrido durante seu período de residência, expôs de forma contundente uma realidade que muitos no setor da saúde vinham denunciando silenciosamente: jornadas de trabalho excessivas, pressão no trabalho, assédio e falta de apoio psicológico.
Catalina, que tirou a própria vida, foi descrita por seus colegas como uma profissional dedicada e disciplinada. Ela fazia parte de um grupo de jovens médicos que enfrentavam semanas com até 100 horas de trabalho acumulado entre plantões hospitalares, rodízios e sobreaviso. Seu caso provocou indignação na comunidade médica e tornou-se um símbolo da luta por melhores condições de trabalho para residentes, internos e estudantes de medicina.

Pediatria, Cirurgia Geral e Ginecologia são as áreas com o maior número de relatos. Foto: Néstor Gómez - EL TIEMPO
Após sua morte, médicos de diversas cidades lançaram uma mobilização nacional sob o lema "Chega de Catas", que buscava destacar os riscos físicos e mentais enfrentados pelos estudantes de medicina. Esse movimento gerou o ímpeto político que levou à chamada Lei Dra. Catalina, atualmente em análise pela Sétima Comissão do Senado.
Um relatório que revela a dimensão do problema. Nesse contexto, a Associação Nacional de Internos e Residentes (ANIR) apresentou um relatório intitulado "Maus-tratos na formação médica: caracterização das queixas em estudantes de graduação e pós-graduação na Colômbia", que busca mensurar a magnitude do problema no país.
O documento, elaborado por Cindy Rodríguez, Juliana Moreno e Gabriel Martínez, sistematiza 163 denúncias provenientes de 11 cidades, um município e 32 universidades, e confirma que os maus-tratos na formação médica não são um fenômeno isolado ou institucional, mas sim estrutural.
Os casos foram classificados por tipo de violência, especialidade, nível acadêmico e local do incidente. Embora o canal de denúncias tenha sido criado para residentes de medicina, queixas também foram recebidas de estudantes de graduação, internos e estudantes de outras áreas da saúde, como odontologia e fonoaudiologia.

Um em cada três relatos de maus-tratos vem de especialidades cirúrgicas. Foto: César Mateus - EL TIEMPO
- O número 124 correspondeu a abuso verbal.
- 123 à violência psicológica
- 64 para sobrecarga de trabalho
- 20 à violência de gênero
- 12 anos para abuso físico
- 11 ao assédio sexual
- 5. Discriminação com base em raça, orientação sexual ou local de origem.
- 2. assédio direto no local de trabalho
As denúncias originaram-se principalmente de Bogotá (103 casos), seguida por Cali (17) e Medellín (15). Casos também foram relatados em Bucaramanga, Barranquilla, Cartagena, Neiva, Pereira, Manizales, Tunja e Popayán. A maioria dos incidentes ocorreu em programas de residência médica (89 casos) e cirúrgica (59 casos).

Bogotá e universidades privadas lideram a lista. Foto de : Néstor Gómez - EL TIEMPO
As especialidades com o maior número de queixas foram:
- Pediatria (16 casos)
- Ginecologia e Obstetrícia (16)
- Cirurgia Geral (15)
- Ortopedia (11)
- Anestesiologia (9)
- Otorrinolaringologia (8)
- Medicina Interna (7)
- Psiquiatria (7)
- Cirurgia Plástica (6)
- Medicina familiar (5)
- Neurocirurgia (4)
O estudo também revelou diferenças entre universidades públicas e privadas: 97 denúncias originaram-se de instituições privadas, 60 de públicas e 6 não tinham dados disponíveis. Bogotá apresentou a maior concentração de universidades com o maior número de denúncias, chegando a registrar 24 reclamações contra uma única instituição privada.
De acordo com os autores, os maus-tratos manifestam-se de diferentes maneiras: desde o abuso de poder por parte de professores e tutores, a normalização da humilhação verbal, a carga de trabalho excessiva sem remuneração justa, até o assédio sexual e a exclusão daqueles que se recusam a seguir padrões hierárquicos.
“A maioria das queixas descreve ambientes de aprendizagem onde a obediência é priorizada em detrimento do desenvolvimento holístico e do bem-estar. Muitos residentes trabalham em turnos que ultrapassam 100 horas semanais sem apoio psicológico ou áreas de descanso”, diz o documento.
Para Cindy Rodríguez, ex-presidente da ANIR e uma das autoras do relatório, o problema está enraizado na cultura médica e se perpetua sob a ideia de que o sofrimento forja melhores profissionais.
“A violência tornou-se algo normal na formação médica. Os estudantes aprendem que, para serem bons médicos, precisam suportar maus-tratos, dormir pouco e sofrer humilhações. Isso é inaceitável e tem sérias consequências para a saúde mental deles e para a qualidade do atendimento que prestam”, explicou Rodríguez.
Segundo a médica, o estudo visa não apenas destacar estatísticas, mas também "iniciar uma conversa sobre o custo humano da excelência médica". Ela acrescentou que 7% das queixas analisadas mencionam tentativas de suicídio ou ideação suicida relacionadas à pressão e maus-tratos, um número que ela descreveu como alarmante.
Rodríguez argumentou que o caso da Dra. Catalina serviu como um ponto de virada: “Catalina não morreu apenas de exaustão física. Ela morreu em um sistema que falha em proteger aqueles que formam os médicos do futuro. É por isso que a Lei Dra. Catalina não é apenas uma homenagem; é uma dívida para com toda a profissão.”
O ex-presidente da ANIR também alertou que a falta de protocolos claros para denúncias agrava a situação, já que muitos estudantes temem represálias ou sanções acadêmicas.
“Em alguns hospitais, se um residente denuncia maus-tratos, corre o risco de perder o estágio ou de não se formar. É por isso que estamos pedindo que a lei garanta canais de denúncia anônimos e sanções reais para as instituições que os permitem”, acrescentou.
A Lei Dra. Catalina: rumo a um ambiente digno para os moradores. Em resposta a essas constatações e à pressão do sindicato, o Congresso está avançando com a tramitação da Lei Dra. Catalina, que já foi aprovada no segundo debate na Câmara dos Representantes e está sendo discutida na Sétima Comissão do Senado.
A iniciativa, promovida pela congressista María Fernanda Carrascal (Pacto Histórico), busca regulamentar a jornada de trabalho, fortalecer os programas de saúde mental e garantir condições dignas para os médicos residentes.
Entre seus principais pontos, a lei propõe:
- Limitar a jornada de trabalho a 12 horas por dia e 60 horas por semana, evitando turnos longos sem descanso.
- Implementar programas de bem-estar e saúde mental para residentes em hospitais e universidades.
- Garantir o acesso a seguros e benefícios sociais, que atualmente são inexistentes ou desiguais.
- Criar canais eficazes para denunciar assédio, maus-tratos ou discriminação.
- Estabelecer mecanismos de supervisão e apoio durante o treinamento médico.
- Sancionar as instituições que não cumprirem as disposições ou permitirem ambientes de abuso.
- Apoiar o retorno dos residentes colombianos no exterior, para fortalecer o sistema nacional de saúde.
- A lei também busca estabelecer uma cultura de formação médica humanizada, na qual tutores, universidades e hospitais compartilhem a responsabilidade pelo bem-estar dos estudantes.
“A Lei Doutora Catalina representa um passo decisivo para dignificar a residência médica e uma resposta concreta a uma reivindicação que já dura anos”, afirmou Carrascal em seu discurso na sessão plenária alguns meses atrás.
Se aprovada pelo Senado, a Lei Dra. Catalina poderá se tornar uma das reformas mais significativas na área da saúde e do ensino médico na última década. De acordo com a Associação Nacional de Inovadores e Racionalizadores (ANIR), sua implementação deve ser acompanhada de rigorosa supervisão e recursos para a saúde mental, pois a lei será inútil sem uma mudança na cultura institucional.
“É necessária vontade política, mas também empatia”, concluiu Rodríguez. “Catalina não pode ser apenas um nome em uma lei; ela deve ser o ponto de partida para uma medicina mais humana, onde aprender não signifique sofrer.”
Jornalista de Meio Ambiente e Saúde
eltiempo



